A trajetória do cinema em Itararé
Por
Matheus Aleixo Macedo Silva (Historiador)
Se observarmos a grande maioria das cidades pequenas espalhadas pelo
Brasil atual, dificilmente encontraremos um cinema em funcionamento. Não é
fácil encontrar esse tipo de entretenimento fora de shopping centers, que
geralmente se restringem aos grandes centros urbanos. Infelizmente, ter um
bom cinema por perto é privilégio para poucos dentre a população interiorana.
Em Itararé a situação é exatamente essa. Se um itarareense se interessar
em ver um filme no cinema (comercial), não o encontrará em seu município,
sendo preciso se deslocar para cidades próximas como Itapeva ou Jaguariaíva –
ambas são exemplos raros dentre as cidades pequenas que garantiram a
sobrevivência do cinema até hoje. Para frequentar cinemas de maior porte
(sempre em multiplex de shopping centers), é preciso viajar para mais longe
ainda, em cidades como Itapetininga, Sorocaba ou Ponta Grossa.
A crítica situação atual do cinema no interior do Brasil torna-se curiosa
se traçarmos um paralelo com a situação de décadas atrás. Por incrível que
pareça, pequenas cidades já abrigaram grandes cinemas de rua que por muitos
anos foram sinônimo de sucesso, inclusive Itararé. Qual seria, portanto, o
motivo que levou os cinemas de rua se tornarem quase extintos em nossa
região?
A história do cinema em Itararé remete ao início do século XX, em 3 de
janeiro de 1914, quando foi inaugurado com grandes festividades o
Theatro São
Pedro, idealizado e realizado por Leôncio Pimentel, sob aclamados discursos
exaltando o progresso da cidade. Seguindo o modelo dos teatros da época, o
Theatro São Pedro não sediava somente espetáculos teatrais, mas oferecia um
abrangente leque de atrações, como podemos observar na descrição feita por
Adriano Queiroz Pimentel:
O noticiário de imprensa local descrevia o tipo dessa
construção, que obedeceu a três fins principais: diversões
em geral e estudos na parte principal; cinema-teatro, na
parte secundária. Para isso possuía duas espaçosas salas à
direita e à esquerda da entrada, destinada a bilhares e
biblioteca, um grande salão para bailes, conferências, etc.
No centro, parte térrea, e no sobrado diversos cômodos
para jogos e outros divertimentos; e anexo ao salão
principal um grande pavilhão para funções teatrais e
cinematográficas.
Além das várias opções de cultura e divertimento que o local oferecia, o
salão principal também incluía em suas atrações exibições cinematográficas.
Nesses anos, quando o cinema estava em sua fase inicial, ainda não havia uma
demanda de produção comercial capaz de preencher programações completas em estabelecimentos voltados unicamente ao cinema. Sem estrutura nem
consolidação para se sustentar como entretenimento autônomo, o cinema
daquele período era sempre um acompanhante de outras diversões mais
populares, como o teatro.
Concomitantemente, o hábito de ir ao cinema não estava arraigado ao
cotidiano do brasileiro, sendo ainda algo novo e exótico. Por esses e outros
motivos, as projeções de filmes naquela época eram realizadas em casas de
entretenimento que agregavam diversas atividades culturais, em uma estrutura
inspirada em modelos europeus.
Nesse mesmo período houve mais uma novidade do gênero em Itararé, o
luxuoso
Cine Teatro Central, inaugurado pelo Maestro José Melillo na Rua
General Carneiro (hoje, 15 de Novembro), onde, durante a projeção dos filmes,
músicos tocavam junto ao palco instrumentos como piano e violino para
musicalizar os filmes mudos.
Anos mais tarde o estabelecimento foi vendido ao Sr. Eugênio Dias Tatit,
que o transferiu de lugar e modificou seu nome, passando a se chamar
Cine
Teatro São José. Por aproximadamente uma década este cine-teatro comandou
sozinho o circuito de cinema da cidade, alimentando a cultura cinematográfica
até sua definitiva consolidação no costume popular itarareense.
Mesmo com o sucesso do
Cine Teatro São José, os tempos áureos do
cinema na cidade só começaram mesmo nos anos 50, quando foi inaugurado o
Cine Itararé. O próprio nome já evidenciava que o novo cinema fora idealizado
totalmente voltado para a atividade cinematográfica, ainda que periodicamente
fossem realizadas formaturas e conferências em suas dependências.
Esse desprendimento do teatro, que no
Cine Teatro São José ainda
dividia espaço com as projeções fílmicas, se deu ao fato de que o
Cine Itararé foi
fruto de um momento onde o cinema já estava consagrado o suficiente para não
mais precisar se inserir em estabelecimentos de entretenimentos variados. O
interesse popular pelo cinema já seria garantia de sua independência financeira
e cultural em relação a outras atrações artísticas.
Inaugurado em 12 de junho de 1955 sob uma direção inicial associada
entre Antonio Colturato Filho, Jurandir Pimentel e Sérgio Augusto Viana, o
Cine
Itararé foi erigido em uma região nobre da cidade, em um trecho de grande
movimentação na Rua São Pedro, próximo à Praça Francisco Alves Negrão. Ele logo se destacou por sua grandiosa construção, de porte majestoso tanto em sua
fachada como em seu interior. Segundo Luiz Toth, que por quase duas décadas
trabalhou como operador de projeção no local, este cinema foi construído aos
moldes de um sofisticado cinema de Londrina (PR), tornando-se assim
referência de qualidade e conforto em toda a região, sendo frequentado por
pessoas de várias cidades vizinhas.
Foto da inauguração do cine
Itararé, em 1955.
O
Cine Itararé não possuía camarotes e galerias, como seus conterrâneos
anteriores, mas por outro lado abrigava cerca de mil acentos, distribuídos sobre
uma estrutura interna inclinada cujo topo ficava a aproximadamente 4 metros
do nível da rua. Tinha uma arquitetura moderna, com iluminação indireta que
circulava o salão de projeções, e oferecia a melhor tecnologia da época, com
lentes como Cinemascope e VistaVision. Tinha contrato de aluguel de filmes
com as melhores distribuidoras, entre elas a Twentieth Century Fox, Warner
Bros. Entertainment, Paramount Pictures, Metro-Goldwyn-Mayer, Universal
Studios e Paris Filmes. Estreou suas instalações com uma sessão do filme A
princesa e o plebeu (Roman Holiday, 1953), e desde então exibiu uma grande
diversidade de filmes por 27 anos.
Em conversas informais com itarareenses que vivenciaram os anos em
que havia cinema na cidade, é fácil identificar que o que mais os marcou foram
os épicos de Hollywood, os western (ou bangue-bangues, como eram chamados popularmente) e, entre as produções brasileiras, o gênero que mais tinha apelo
ao público eram as comédias do Mazzaropi.
Havia também a exibição de seriados, como, por exemplo, O Vingador
Desconhecido, com um episódio a cada domingo. Mesmo com a incrível lotação
de mil lugares, o antigo projecionista Luiz Toth afirma que era comum o cinema
exceder sua capacidade de público, muitas vezes exibindo filmes com dezenas de
pessoas assistindo em pé, nas laterais.
O
Cine Itararé certamente ocupa um lugar especial na memória dos
itarareenses daquela geração. O cinema, naquela época, não se resumia ao
simples ato de ver um filme. Na verdade, ele representava um evento social, que
unia toda a cidade para se divertir por algumas horas, imersa na fantasia do
cinema. Os grandes lançamentos por vezes ficavam até uma semana em cartaz,
quando toda a cidade ficava envolta nos comentários sobre o filme.
Esses anos de glória do cinema em Itararé perduraram até o fim da
década de 60. A partir dos anos 70 a situação começou a se alterar, quando
surgiram alguns fatores que, aos poucos, afetaram negativamente o cinema.
Como primeiro grande fator a prejudicar o cinema, podemos apontar o
surgimento da televisão. Foi em dezembro de 1966 que se instalou o serviço de
televisão em Itararé, juntamente com o Clube da TV, grupo que se formou para
supervisionar a manutenção das instalações. Em um lento processo, a televisão
acabou se tornando um elemento comum nos lares itarareenses, o que acarretou
em uma verdadeira revolução nos hábitos da população.
O contato com o entretenimento audiovisual, anteriormente restrito aos
cinemas, agora estava na sala das residências. A comodidade da televisão
contribuiu para que as pessoas ficassem mais em suas casas. O cinema,
consequentemente, sofreu abalos. A popularização do vídeo tirou do cinema seu
monopólio de entretenimento no gênero. A contemplação das obras
cinematográficas passou a ser também um ato solitário, entre espectador e
televisão, se desvencilhando do conceito cinema/evento social.
Multidões não mais se reuniam com a mesma frequência para ir ao
cinema, já que agora os filmes também poderiam ser exibidos dentro dos lares
de cada um. Obviamente, essa mudança não foi repentina – foi um lento
processo de transição que gradativamente firmou raízes no cotidiano e, assim,
alterou o hábito de assistir filmes.
Além da popularização da televisão, outros fatores menos óbvios
contribuíram para a decadência do cinema em Itararé. Em plena época da
Ditadura Militar no Brasil, por exemplo, foi decretada uma lei que determinava
uma cota específica de exibição de filmes brasileiros para uma determinada
quantidade de filmes estrangeiros. No entanto, tal exigência não correspondia à
situação da indústria cinematográfica no Brasil, que na época não tinha um
ritmo de produção e distribuição que atendesse a essa nova demanda.
Como resultado, produções de baixo orçamento e de qualidade duvidosa
– as famosas “pornochanchadas” 3 – passaram a ser realizadas em grande
quantidade, dominando a produção cinematográfica nacional, e cinemas de
todo o Brasil se viram obrigados a dar prioridade de exibição aos filmes
nacionais. Com isso, a pornochanchada passou a ser um gênero recorrente,
muitas vezes dominante, na programação dos cinemas brasileiros, e em Itararé
não foi diferente.
A pornochanchada foi um gênero que, apesar de ter garantido certa
popularidade e lucro financeiro por um momento, não foi do agrado de boa
parte da sociedade, sobretudo as camadas mais puritanas ou as
intelectualizadas, o que contribuiu para a má fama que o cinema brasileiro
adquiriu a partir desse período.
Em Itararé houve grande rejeição a esses filmes, ocasionando na
gradativa diminuição de público nos cinemas. Não havia como escapar da
exibição das pornochanchadas, mesmo que a frequência nessas seções fosse
mínima. A obrigatoriedade em realizar sessões cada vez mais vazias acabou
provocando um significativo prejuízo aos cinemas da cidade, agravado ainda
mais com os altos impostos que tinham que ser pagos ao município e à
Embrafilme.
As pornochanchadas afetaram não somente a frequência de suas próprias
seções, mas também das seções de filmes estrangeiros, já que a qualidade da
programação dos cinemas causou o desinteresse dos mesmos na cidade. Sendo
assim, apesar do sucesso que muitos filmes estrangeiros ainda tinham ao estrear
em Itararé, nenhum mais se comparava aos sucessos dos anos anteriores.
As novas gerações cresceram vendo o cinema como um local reservado
para filmes “imorais” em sessões quase vazias e mal frequentadas. Celso
Colturato, filho de Waldemar Colturato, um dos antigos sócios do
Cine Itararé,
relata que, certa vez, houve uma procissão religiosa pela Rua São Pedro, e ao
passar em frente ao
Cine Itararé, muitos da multidão protestaram, indignados,
devido a um cartaz de um filme brasileiro cujo conteúdo era de caráter erótico –
uma vez que as pornochanchadas sempre se utilizavam de cartazes apelativos
com duplo sentido.
Com o passar dos anos, a imagem do cinema brasileiro foi bastante
prejudicada, e frequentar um cinema não era mais uma diversão muito
apreciada pela grande maioria. No caso de Itararé, é possível notar o reflexo
dessas pequenas mudanças na Tribuna de Itararé, onde toda semana se
publicava a programação dos cinemas.
Entre as décadas de 50 e 60 havia um considerável espaço no jornal para
a publicação da programação do
Cine Itararé, com uma breve descrição de cada
filme que seria exibido naqueles dias, além de grandes e chamativos espaços
publicitários que esporadicamente exibiam cartazes de filmes muito aguardados
que chegariam em breve.
A partir de maio de 1960 o
Cine São José também passou a publicar sua
programação semanal, pois foi quando os irmãos Tatit, proprietários, o
arrendaram para a Empresa Sorocabana, dos irmãos Colturato, também donos
do
Cine Itararé.
No fim da década de 60, no entanto, a programação de cinema teve seu
espaço diminuído no jornal; não havia mais a descrição de cada filme, nem
imagens chamativas de lançamentos aguardados; somente uma pequena lista
indicando o nome dos filmes. Na década de 70 as publicações sobre o cinema
começaram a oscilar, não mais aparecendo em todas as edições, até que
sumiram completamente dos jornais.
O
Cine Itararé volta a publicar sua programação somente no fim da
década, em uma nova coluna que agora englobava não somente cinema, mas
falava também sobre televisão e eventos culturais na cidade – deixando claro
que o cinema não era mais destaque quando o assunto era entretenimento; a
concorrência da televisão já demonstrava seu poder.
Nesse período, o
Cine São José já havia fechado. Em 1979 o
Cine Itararé
foi arrendado para João Bloés, dono de cinemas de Capão Bonito, e logo fechou.
Ao contrário do que houve em algumas cidades próximas, não houve nenhum
tipo de manifestação popular para impedir o fechamento do último cinema da
cidade, trazendo à tona a constatação de que, na época de seu fechamento, o
cinema já estava bem longe da representação social que tinha nos anos
anteriores em Itararé.
Esse breve histórico sobre o auge e decadência dos cinemas de rua em
Itararé se insere em um contexto que abarcou todo o Brasil durante o século XX.
Hoje em dia, são poucas as cidades pequenas que ainda mantém algum cinema
em funcionamento, e na maioria desses exemplos escassos, a demanda de
público é sempre pequena se comparados aos cinemas multiplex dos shoppings
centers, líderes no mercado de cinema atual.
Na maioria das cidades, a decadência dos cinemas em meados dos anos
80 cedeu lugar ao crescimento urbano e a necessidade de grandes espaços no
centro para a instalação de mercados, grandes lojas, estacionamentos e igrejas.
Os velhos prédios de cinema, geralmente erigidos em grandes terrenos,
tornaram-se alvos comuns para investidores com novas propostas. O
Cine
Itararé é um exemplo disso, já que, apesar de não ter sido demolido, teve seu
prédio modificado para ser substituído por lojas e também uma igreja.
Com esses apontamentos, podemos compreender que, em cada época, o
cinema tem um significado específico perante a sociedade, desde os imponentes
e tradicionais cine-teatros até os modernos e consumíveis multiplex. No caso de cidades pequenas como Itararé, que no passado abrigaram grandes cinemas em
seus anos de glória, a era do cinema já se foi. Para o povo itarareense, o cinema
de hoje é um elemento muito distante de sua realidade social, um
entretenimento que se reserva apenas aos grandes centros e não tem nenhuma
ligação com sua cidade – um triste contraste perante tudo aquilo que o cinema
já significou para Itararé.
Referências Bibliográficas:
PIMENTEL, Adriano Queiroz. Apontamentos Históricos de Itararé.
Itararé: Tipografia Itararé, 1982.
BANDONI. Lázara Aparecida Fogaça. Itararé na história. Itararé: Tipografia
Itararé, 2008.
Jornal Tribuna de Itararé. Itararé, 1955-1980. Semanal.
Fontes Orais:
Luiz Toth, antigo projecionista do
Cine Itararé. Concedeu uma entrevista em
28/05/12.
Celso Colturato, filho de Waldemar Colturato, um dos sócios do
Cine Itararé.
Concedeu uma entrevista em 28/05/12.
ANTIGOS CINEMAS DE ITARARÉ :
THEATRO SÃO PEDRO
Inauguração : 03/01/1914
CINE THEATRO CENTRAL
Endereço : Rua 15 de Novembro, 242 - Centro
Virou agência bancária.
CINE TEATRO SÃO JOSÉ
Endereço : Rua Newton Prado, 241 - Centro
Capacidade : cerca de 800 lugares
O auditório tinha três pavimentos, sendo o primeiro e mais alto com pessoas de pé. No segundo ficavam os camarotes, mais caros, destinados às famílias tradicionais da cidade. Um terceiro, com preços mais acessíveis, e a plateia que sempre estava lotada para assistir peças de teatro e filmes.
Virou filial de uma universidade de Santos.
CINE ITARARÉ
Inauguração : 1955
Filme inaugural :
"A Princesa e o Plebeu".
Endereço : Rua São Pedro, 1326
Capacidade : cerca de 900 lugares
Virou um estabelecimento comercial.
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